quarta-feira, 15 de julho de 2020

A pandemia de poucos leitores




A pandemia de poucos leitores
Carlos Cartaxo
Pandemias são ventos que sopram e levam notícias indesejáveis. Desde que me fiz e me assumi como escritor luto contra a pandemia dos poucos leitores. A falta de leitura é uma avalanche que leva consigo, ladeira à baixo, parte da evolução humana. É a doença que dissemina a ignorância. Esse é um virus devastador, afeta a família, o trabalho, as relações sociais e até a política, seguimento que define nossas vidas.
Eu tenho alguns livros escritos, dentre eles, o romance "A família Canuto e a luta camponesa na Amazônia" que merece destaque pelas crítcas que tem recebido e por ter sido agraciado com o Prêmio Jabuti de Literatura, Mas ele foi atingido pelo contágio da pandemia de poucos leitores. A grande maioria das pessoas, ditas de esquerdas e também as de direita, não leram esse romance/reportagem. Nesse momento em que há um ataque do governo Bolsonaro estimulando a grilagem nas terras indígenas e nas terras pertencentes a União, concomitante com o desmatamento da amazônia, A família canuto é um  remédio, digamos uma vacina, contra essa pandemia da ignorância.
Como professor, vivo o dilema de trabalhar com pessoas que não leem ou leem muito pouco. Esse comportamento tem afetado meu rendimento profissional porque me deparo com o fenômeno do pouco aprofundamento teórico na formação acadêmica. Em vários momentos me vejo diante do imbróglio de preparar bachareis com formação global e humanizada ou formar técnicos que apenas são operacionais, sem  a capacidade de refletir sobre o contexto do seu trabalho. Nesse sentido, tenho que lutar contra a pandemia de poucos leitores, e, como consequência, volto a publicar a crítica de Domngos Meirelles sobre A família Canuto porque ela reforça que o livro é atualíssimo e precisa sair das prateleiras para ocupar seu devido lugar nos braços do(a)s leitore(a)s. 
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Crítica de Domingos Meirelles sobre o romance A FAMÍLIA CANUTO de Carlos Cartaxo


Anatomia da resistência no latifúndio amazônico

Domingos Meirelles*

Ao resgatar a tragédia que se abateu sobre o clã dos Canuto no Sul do Pará, Carlos Cartaxo produziu um relato comovente de uma das páginas mais sórdidas da vergonhosa história do latifúndio na região amazônica: o confronto desigual e perverso entre os grandes fazendeiros e os trabalhadores rurais que lutam para sobreviver, num ambiente desapiedado e hostil, onde o código gelatinoso das leis se orienta mais pelo tilintar das moedas do que pela boa aplicação do direito.

Nessa terra de ninguém, onde os interesses econômicos se amancebam com a impunidade e a corrupção, é que trafega a narrativa romanesca de Cartaxo, em sua denúncia social sobre os crimes cometidos no rastro do destrambelhado processo de ocupação da Amazônia promovido pelos governos militares, a partir de 1964. Com um texto claro e contundente, despojado de arabescos literários, mas com sabor de romance, o autor nos conduz pela trilha de esperanças que João Canuto percorreu, do interior de Goiás ao Sul do Pará, onde seus sonhos foram enterrados junto com ele.

O tom romanesco que perpassa as páginas do livro, onde a mistura de jornalismo e literatura tem o compromisso de realçar a denúncia das misérias do campo, não compromete o caráter documental da obra; ao contrário, imprime ao relato de Cartaxo extraordinária dimensão humana, sem que ele se deixe contaminar pela criação de heróis bem construídos, criados ou revelados em narrativas semelhantes, como é comum no gênero. Os personagens que recolheu entre as muitas desgraças que povoam Rio Maria foram reconstituídos com alma, carne e ossos, sem que o autor lhe conferisse uma aura que os singularizasse como “seres excepcionais”. Cartaxo não forjou mitos – ele fala apenas de homens e mulheres, gente pobre do campo que não se curvou diante da opressão e do arbítrio. Com a precisão e a clareza de uma aula de anatomia, ele expôs as misérias e grandezas de uma família de camponeses que se transforma num exemplo de resistência diante da espoliação dos fazendeiros da região.

Em sua maioria representantes de uma burguesia emergente e arrogante, vinda de outros lugares, os grandes proprietários não suportam a coragem, a determinação e a altivez dos Canuto – João, a mulher Geraldina e os filhos ainda adolescentes. Acusado de invadir fazendas, quase todas latifúndios improdutivos, em companhia de posseiros expulsos de outras roças, Canuto atrai o ódio dos novos ricos empenhados em aumentar seu patrimônio a qualquer preço na floresta amazônica. Em Rio Maria, havia ainda outro bom motivo para que essa oligarquia moderna, “cria da ditadura militar”, detestasse a presença de Canuto naquele lugar: ele era também um dos mais ativos militantes do PC do B na região.

Numa tarde escaldante de dezembro de 1985, João Canuto foi tocaiado e morto por dois pistoleiros de aluguel com 14 tiros à queima roupa, um deles na cabeça, um pouco acima da sobrancelha direita. Foi morto na rua, para que todos vissem. A multidão compungida, que acompanhou seu corpo pelas ruas, entoava hinos religiosos e cantava a música Pra Não Dizer que Não Falei das Flores, de Geraldo Vandré. Canuto foi enterrado no novo cemitério de Rio Maria, onde a maioria das covas abriga centenas de posseiros, vítimas como ele, da violência no campo.

A cena do enterro é uma das páginas mais comoventes do livro. Nas faixas que seguiam à frente do cortejo, lia-se uma palavra de ordem: “Reforma Agrária, Já!” Na floresta de estandartes e galhardetes, que seguia o caixão, viam-se bandeiras do PC do B e do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Rio Maria.

O fazendeiro mandante do crime foi solto através de habeas corpus. Os assassinos foram também contemplados com o mesmo benefício. Libertado, o mandante deixou a região, cumpriu breve exílio voluntário em Goiás, e quando o caso esfriou, retornou a seus afazeres, no Sul do Pará.

O Processo foi engavetado e ninguém foi condenado. A família Canuto ainda perdera mais dois filhos, executados a mando do latifúndio. Em 93, permaneci dez dias em Rio Maria produzindo um Globo Repórter. Então, pude entender porque a violência e a impunidade se apossaram daquela região.

O livro de Cartaxo é um comovente libelo contra a barbárie no campo.

* Jornalista, foi apresentador do programa “Linha Direta” da Rede Globo, e escritor, autor de “As Noites das Grandes Fogueiras – Uma História da Coluna Prestes”, entre outras obras. Atualmente está da Tv Record.

Resenha publicada na Revista “Saber” , Ano I – Nº 3, julho/agosto 2001, p. 31.